Onde o exercício militar falha

Artigos de Baden-Powell para a revista " The Scouter ", 1909 - 1941
traduzidos por: Capitão Anilto de Ribeirão Pires/SP. 


Tradução


Onde o exercício militar falha

Vejo em um dos jornais recentes que alguém revelou-se como o inventor original do Escotismo.
Este é o quarto em que agiu assim em quatro anos. Tenho a impressão que o fundador original, Epictetus(2), morreu muitas centenas de anos atrás.
Este em particular fala que nós pervertemos os ideais originais dele e que não somos suficientemente militarizados.
A verdade é que esses cavalheiros vêem uma semelhança em nossa tropa com algo que eles imaginaram para eles, mas não estudaram a fundo e não puderam perceber, portanto, seu significado ou suas possibilidades.
Qual nosso objetivo? Eles parecem não considerar isto como alguma coisa importante no argumento deles. Mas acontece que é a pedra angular na qual a questão se apóia.
Nosso objetivo é pegar os jovens e abrir suas mentes, revelando o caráter de cada rapaz (e não há dois exatamente iguais), fazendo-os bons homens, para com Deus e sua pátria, encorajando-os a serem trabalhadores enérgicos e serem honrados, varonis e com sentimento fraterno uns com os outros.
Como o nosso Movimento atrai todas as classes ( os mais pobres têm iguais chances e consideração tanto quanto os mais afortunados), muita da desigualdade humana do presente será transformada em valorosa cidadania. É pelo caráter de seus cidadãos, e não pela força de seus braços, que um país se mostra superior em relação a outros.
Se pudermos instigar aquele caráter e senso de fraternidade em todos os nossos jovens, em casa e nos domínios britânicos ultramarinos, estaremos forjando um elo mais forte do que o que une no momento o Império inteiro.
E como o Movimento torna-se firme, como está acontecendo também em países estrangeiros, promoverá um laço comum de simpatia que traz a paz entre as nações.
Nossas oportunidades e possibilidades nesse sentido são imensas, e estes são os objetivos que nossos Chefes Escoteiros têm ao planejar seu trabalho.
Mas nossos originais inventores aparentemente nunca pensam nessas finalidades. Isto certamente não poderão eles alcançar através do exercício militarizado mais do que poderiam alcançar ensinando seus avós a andar na corda bamba.
Pessoalmente não ousaria falar disto não fosse por ter alguma experiência nesse assunto em particular. Uma boa parte da minha vida foi gasta treinando rapazes para serem soldados, cadetes ou Territorials (3), e servi com todos eles na ativa em mais de uma campanha. Tive oportunidade de ver os cadetes novamente na África do Sul e Canadá, e, nos primeiros tempos na Nova Zelândia e Austrália. Estas visitas me confirmaram a opinião que então expressei, ou seja, aquela que com o excelente material que encontramos em nossos jovens por todo o Império é bastante possível mandar para fora uma impressionante força de cadetes, todos habilidosos em manobras, cheios de autoconfiança, fardados com esmero, e com alto percentual de atiradores de elite. Mas muitas pessoas parecem achar que homens bem treinados são necessariamente bons soldados. Eu os testei em serviço e tive pouco uso para eles. Quanto melhor o soldado é exercitado em ordem unida, menos pode-se confiar nele para agir com responsabilidade individual.
A chamada disciplina era muito competente para impor neles o medo pela punição ou reprimenda, em vez de impor o espírito de agir corretamente. E isto é essencial, se você não quer meramente dar um verniz de obediência, que não resiste a um teste de serviço.
Estas coisas, e muitos outros atributos do bom soldado, que podem ser resumidos na palavra caráter, devem ser instilados neles antes de poder considerá-los adaptados para o treinamento militar em ordem unida. Estas são, na realidade, o polimento final, e não, como muitos parecem pensar, o primeiro passo para fazer um homem batalhador.
Os Boers nunca foram treinados militarmente, contudo se mostraram bons lutadores, e resistiram a nossas tropas treinadas em uma campanha de mais de dois anos.
Por que isso aconteceu? Porque eles tinham o lastro apropriado de caráter para a tarefa – eles eram independentes e diligentes, especializados em usar melhor sua coragem, bom senso e astúcia (os três c’s que fazem um bom soldado – courage, commom sense e cunning). Aqueles homens só precisaram de um polimento final de ordem unida e uma disciplina um pouco mais forte para torná-los muito melhores soldados.
Esta é a seqüência de treinamento necessária. Se você aplica o sentido contrário, obtém o aspecto atraente. Você precisa, como essência, primeiramente ter o caráter estabelecido como seu lastro de trabalho.
Agora, qual é o objetivo dessas pessoas que querem treinamento militar em seus jovens?
Ordem unida nunca fará um bom cidadão, o que é bastante óbvio.
O objetivo deles deve ser então (a) fazê-los soldados em potencial para eles e (b) pegar os jovens com fascinação por ordem unida e assim trazê-los debaixo de alguma forma de disciplina e exercícios que são bons para eles.
No primeiro caso é essencial que os Chefes Escoteiros tenham instrutores excepcionalmente bons, caso contrário o ensino de disciplina nas paradas uma ou duas vezes por semana provavelmente não terá um efeito muito duradouro no caráter dos rapazes, e também o treinamento enfraquece no jovem depois de algum tempo e o afasta de tornar-se um soldado mais tarde. Se ele se engaja pensando que sabe tudo sobre o assunto, seu espírito, acostumado com o sofrimento temporário, ressentir-se-á com a disciplina quando estiver sob uma coisa tão real quanto permanente.
Como Oficial, simpatizo totalmente com alguém que disse que preferiria ter recrutas que nunca foram treinados, a esses que descreveu como “pães meio assados, que estavam crus, foram amassados novamente, e assados de novo antes que fossem bons soldados”.
Em todo caso os líderes desses jovens poderiam aconselhá-los melhor a se tornarem cadetes genuínos e não mascará-los como Escoteiros.
No outro caso (b), a atração e treinamento de jovens rebeldes é certamente mais recomendável, e de longe o meio mais fácil para lidar com eles no que diz respeito ao comandante.
Mas então porque não unir-se à Associação Cristã de Moços ou aos Jovens da Igreja, cujo treinamento segue aquela direção?
Por transformarem nossa roupagem, mas não nossos idéias, ele espalham falsos conceitos sobre nossas intenções. Os pais e o clero supõem naturalmente que a arte militar é o fim e o objetivo do treinamento Escoteiro, e reagem de acordo. Eles não percebem que estamos trabalhando em um plano muito mais alto que aquilo, ou seja, fazer bons e bem sucedidos cidadãos.
Claro que há muitos Chefes Escoteiros em nosso Movimento que gostariam de dar um tom definitivamente mais nacionalista no treinamento de seus jovens. Eles acham que os jovens por si mesmos não percebem que o treinamento do caráter deles como escoteiros será a base de melhor qualidade para atingir metas futuras, seja ela tornar-se um soldado ou marinheiro, cidadão ou colono.
(Uma pequena prova nesse sentido é encontrada no Corpo de Cadetes dos Domínios Ultramarinos. Eu fui inspecionar os Cadetes, e encontrei algo em torno de 80 por cento de Sargentos Cadetes que foram Escoteiros de início.)
Bem, eu estou completamente de acordo com o sentimento de parte de nossos Chefes Escoteiros, e penso que encontrarão uma abertura no novo esquema dos Escoteiros Senior que agora está sendo criado, quando, com a base estabelecida e os jovens com idade para julgar por si mesmos, eles poderão seguir em alguma das linhas colocadas acima que possa atraí-los.

Janeiro de 1914

(1) Were Drill Fails – Drill: exercício de recrutas, manobra, treino ou exercício ou instrução severa em qualquer ramo de conhecimento, indústria ou ciência; exercitar os soldados, fazê-los executar exercício, manobrar, treinar, adestrar, instruir nos rudimentos de uma ciência.; ordem unida.
(2) – Epiteto, em grego: ?p??t?t??, epiktetos, “comprado” (* em Hierápolis, Frígia 55 – † Nicópolis, Épiro 135) foi um filósofo grego estóico que viveu a maior parte de sua vida em Roma, como escravo a serviço de Epafrodito, o cruel secretário de Nero que, segundo a tradição, uma vez quebrou-lhe uma perna. Apesar de sua condição, conseguiu assistir as preleções do famoso estóico Gaio Musônio Rufo. De sua obra se conservam um Enchyridion, o “manual de Epiteto”, e alguns discursos – editados por seu discípulo Flavio Arriano. Como viver um vida plena, uma vida feliz? Como ser uma pessoa com boas qualidades morais? Responder a estas duas perguntas fundamentais foi a única paixão de Epiteto. Embora suas obras sejam menos conhecidas hoje em função do declínio do ensino da cultura clássica, tiveram enorme influência sobre as ideias dos principais pensadores da arte de viver durante quase dois mil anos.Para Epíteto, uma vida feliz e uma vida virtuosa são sinônimos. Felicidade e realização pessoal são consequências naturais de atitudes corretas.
(3) Territorial Army – força reserva do exército Inglês, algo como nosso Tiro de Guerra.


Original


Where Drill Fails

I SEE that in one of the newspapers lately the original inventor of Scouting has discovered himself.
He is the fourth who has done so within the last four years. I was under the impression that the original founder, Epictetus, died many hundreds of years ago.
This particular one tells us that we have perverted his ideals and that we are not sufficiently military.
The truth is that these gentlemen see a similarity in our body to something that they have thought of for themselves, but they have not studied its soul and have not, therefore, grasped its meaning or its possibilities.
What is our aim? They don’t seem to regard that as of any special importance in their argument. But it happens to be the keystone on which the whole question stands.
Our aim is to get hold of the boys and to open up their minds, to bring out each lad’s character (and no two are exactly alike), to make them into good men for God and their country, to encourage them to be energetic workers and to be honourable, manly fellows with a brotherly feeling for one another.
As our Movement attracts all classes (the poorest get equal chances and consideration with the more fortunate), much of the present human wastage will be turned into valuable citizenhood. It is by the character of its citizens, not by the force of its arms, that a country rises superior to others.
If we can get that character and sense of brotherhood instilled into all our boys at home and in the British Dominions overseas, we shall forge a stronger link to that which at present holds the whole Empire together.
And as the Movement gets a hold, as it is doing, in foreign countries as well, it will promote a common bond of sympathy which makes for peace between the nations.
Our opportunities and possibilities in these directions are immense; and these are the aims which our Scoutmasters have before them in planning their work.
But our original inventors have apparently never thought of these ends. It is certain they could no more attain them by drill than they could attain them by teaching their grandmothers to walk the tight-rope.
Personally, I would not presume to speak were it not that I have had some little experience in this particular line. A good part of my life has been spent in training lads to be soldiers, cadets, or Territorials, and I have served with all of them on active service in more than one campaign. I have since had opportunities of seeing again the cadets in South Africa and Canada, and, for the first time, in New Zealand and Australia. These visits have confirmed me in the opinion which I then expressed, namely, that with the excellent material that one finds among our boys all over the Empire it is quite possible to turn out a very smart- looking army of cadets, all able to drill steadily, to hold themselves well, to dress smartly, and to show a high percentage of marksmen on the range. But many people seem to have the idea that well-drilled men are necessarily good soldiers. I have tried them on service and have very little use for them. The better the soldier is drilled, the less he can be trusted to act as a responsible individual.
Their so-called discipline was too apt to come from fear of punishment or reprimand instead of from the spirit of playing the game. Yet this is essential, if you don’t want a mere veneer of obedience which won’t stand the test of service.
In the Army the well-meaning boys who came to us as recruits had been taught their three R’s in the day schools, but they had no idea of having responsibility thrust upon them, of having to tackle difficulties or dangers, of having to shift for themselves, and having to dare death from a sense of duty.
These things and the many other attributes of good soldiers, which may be summed up in the word character, had all to be instilled into them before one could consider them as fit for drill and military smartness. These are, in reality, only the final polish, and not, as many seem to think, the first step in making a fighting man.
The Boers were never drilled, yet they made very good fighters, and stood up to our drilled troops through a campaign of over two years.
Why was this? Because they had all the proper ground-work of character for the work — they were self-reliant and resourceful, practised at using to the best advantage their courage, common sense, and cunning (the three C’s that go to make good soldiers). Those men only needed the final polish of drill and a little stronger discipline to make the very best of soldiers.
That is the sequence of training that is wanted. If you apply it the reverse way, you get the veneer. You must, as an essential, first have character established as your groundwork.
Now, what is the aim of these men who go in for drilling their boys?
Drill will never make a citizen, that is fairly obvious.
Their object must therefore be either (a) to make potential soldiers of them or (b) to catch boys with the glamour of drill and thereby to bring them under some form of discipline and exercise that is good for them.
In the first of these cases it is essential that the Scoutmasters should have exceptionally good instructors, otherwise the discipline learnt in the parades of once or even twice a week is not likely to have a very lasting effect on the lads’ characters; and also the drill palls on a boy after a time and puts him off becoming a soldier later on. If he does join the service he thinks that he knows all about it, and his soul, accustomed to it as a temporary infliction, resents discipline when he comes under the real thing as a permanency.
As an officer I quite sympathise with the one who said that he would rather have recruits who had never been drilled than those whom he described as “half-baked buns who had to be uncooked, rekneaded, and baked again before they were any good as soldiers.”
In any case the leaders of these boys would surely be better advised to turn them into genuine cadets and not masquerade them as Boy Scouts.
In the other event, (b), the catching and training of wild boys is certainly most commendable, and it is far the easier way to deal with them so far as the officer is concerned.
But, then, why not join the Boys’ Brigade or Church Lads, whose training lies in that direction?
By mutating our dress, but not our ideals, they spread false notions as to our intentions. Parents and clergy naturally suppose that soldiering is the end and aim of the Scouts’ training and resent it accordingly. They do not realise that we are working on a far higher plane than that, namely, to make good and successful citizens.
Of course there are many Scoutmasters in our Movement who would like to give a more definitely national note to the training of their boys. They feel that the boys themselves do not quite realise that the character training they an getting as Scouts will be the very finest groundwork for goal results later on, whether they become soldiers or sailors, citizens or colonists.
(A small proof in this direction is to be found in the Cadet Corps of Overseas Dominions. I made inquiry as I went inspecting the cadets, and I found that something like 80 per cent of the cadet non-commissioned officers had been Boy Scouts to start with.)
Well, I am fully in sympathy with this feeling on the part of those Scoutmasters, and I think that they will find their opening in the new scheme of Senior Scouts now being promulgated, when, the groundwork having been laid and the boys having come to an age for judging for themselves, they can specialise in any of the above lines that may appeal to them.

January, 1914.